quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

De quando estive com o pai.

Pai, 
olhai por aqueles 
[que habitam um universo
sem nada
a admirar.
Tende piedade do choroso
[que vive
não só
de lágrimas.

Mas tende piedade,
ademais,
do homem poeta:
frágil,
esquizofrênico,
de óculos quadrado,
que transita pelos próprios lares
repetindo à poesia:
não creio,
não é possível,
diga a todos que é totalmente impossível deixá-la.


Gabriel Borges

domingo, 23 de dezembro de 2012

eu durmo comigo



eu durmo comigo
de bruços deitada eu durmo comigo
virada pra direita eu durmo comigo
eu durmo comigo abraçada comigo
não há noite tão longa em que não durma comigo
como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo
eu durmo comigo debaixo da noite estrelada
eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário
eu durmo comigo às vezes de óculos
e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo
e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado.

Angélica Freitas é pelotense, autora dos livros: Rilke Shake (2007),  Um útero é do tamanho de um punho (2012) e Guadalupe, em parceria com Odyr Bernardi. (2012).

[postado por Ediane Oliveira]

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

a escolha de cecília

nenhuma vontade lhe parecia válida
ou suficiente
gastava no uso repetido os dias velhos
e se desgastava neles
desgostava deles a ausência de serventia
a tal ponto sem vontade
sem pressa e sem demora
cecília esvaziava-se de si
de sua lucidez cansada

correram alguns a dizer que morreu por escolha
embalada ao ânimo que lhe faltava em vida.



Denise Freitas, nasceu em Rio Grande (RS) no dia 10 de dezembro de 1980. É professora de História, no ano de 2007 publicou o livro "Misturando Memórias: contos e crônicas de Itajaí", em parceria com Leandro dos Santos. Blog www.sisifosemperdas.blogspot.com

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

ainda penso nela


é claro que sinto saudade
quando estou no canto esquerdo daquela janela.
não raro me vejo à espera
de reviver um romance da minha mocidade.

de um lado, ela vinha
[sozinha,
com seu aspecto hábil, primitivo no feminino.
de outro, estávamos
[juntos,
com nosso instinto, idiossincrasia conjugal.

é saudade, claro que é!
"a mulher não nasce mulher, torna-se mulher"
quantas vezes me falou isso ao pé do ouvido.

fomos felizes.
creio que, por ela, ainda sou feliz.

e, por isso, que
[naquela janela,
está a saudade de uma antiga namorada:
Simone de Beauvoir.

Gabriel Borges

o tempo não a tirou de mim.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Rebenque

Um certo Caboclo Damatta me disse
Que um tal de João Simões Lopes Neto
Deixou escrito numa nota promissória
Que o rebenque...
O rebenque são os olhos.

Então me pus a pensar
Ainda arrepiado
Arredio a qualquer chibatada
Que se o rebenque são os olhos
Meu amigo Caboclo
A lágrima é a pele marcada.



terça-feira, 11 de dezembro de 2012

das pretensões

E quando entendemos tudo
errado
pretensiosamente
"supondo que"

não somos assim
habilitados a saber
das coisas
dos outros

entender o próprio erro
seria um acerto
não fosse apenas um novo tipo
de pretensão.

Ju Blasina
P+2T: jublasina.blogspot.com.br

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Inventário do Desamor



Deixo contigo meu sangue
meus livros e minhas horas.

E a dor cansada na insônia
contra o lençol das demoras.

Deixo a paz que eu encontrei
mas me fugiu entre os dedos.

E a chave surda e sem uso
da gaveta dos meus medos.

Deixo perdido um poema
e não por esquecimento:

mas pra que um dia eu te encontre
na leve pauta dos ventos.

Deixo contigo meu ventre
meus olhos, minhas entranhas.

E com mãos nuas, reflito:
- Perde mais quem hoje ganha?

Deixo contigo meus beijos
meu suor, meu desabrigo.

Deixo roupas, documentos.
De meu, nada irá comigo.

Deixo a sombra, de teimosa.
Deixo as fotos, deixo a casa.

Do poço mais infinito
só levo a alma, presa e rasa.

*Jaime Vaz Brasil é psiquiatra e escritor. Diretor técnico e docente do Instituto Fernando Pessoa. Possui seis livros publicados e recebeu vários prêmios literários e em festivais de música. Dentre eles, o Prêmio Açorianos de Literatura e o Prêmio Felippe d'Oliveira. Alguns dos poemas foram musicados, e há dois livros com os poemas em cd: "Os Olhos de Borges", musicado por vários compositores, e "Pandorga da Lua", musicado por Ricardo Freire. 

[postado por Ediane Oliveira]

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Imolação

serpente no jeito
(tramando) no transe .dois-pontos. 
uma flor
de-li-ca-da-men-te esquecida
para que secasse
veneno - seiva do pérfido na pág
i
na 245
da negra
com letras em ouro BÍBLIA SAGRADA

hoje
por que justo
se não havia "por que"
se era abandono já

aí eu grito pentecostes.

Henrique Pimenta - autor de "99 sonetos sacanas e 1 canção de amor".

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

EN PIE


Sigo en pie
por latido
por costumbre
por no abrir la ventana decisiva
y mirar de una vez a la insolente
muerte
esa mansa
dueña de la espera

sigo en pie
por pereza en los adioses
cierre y demolición
de la memória

no es un mérito
otros desafían
la claridad
el caos
o la tortura

seguir en pie
quiere decir coraje

o no tener
donde caerse
muerto


Mario Benedetti (1920 - 2009)


[Postado por Daniel Moreira]

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

FOMES


o dia é uma laranja
cheia de gomos
sumarenta
doce e ácida a se oferecer aos dentes
e desafiar a língua 
a insuspeitos paladares

o dia é uma laranja
que se abre, colorida,
e me chama, irresistível:
- experimenta!

o dia é uma laranja
que existe tão somente
para matar-me a sede
e deliciar-me a boca

quero-a toda, laranja-dia, 
mastigá-la fibra a fibra
sorvê-la até a última gota 
não deixar nada para trás
- sementes, casca, nada!

o dia é uma laranja madura e sedutora
e a noite virá em paz
se puder comê-la inteira
completamente
sem desperdício

o dia é uma laranja
que me relembra 
que estou viva
e que viver é o meu vício!

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde sempre em São Paulo, sempre à procura da poesia na loucura da cidade.
 

[Postado por Ju Blasina]