sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana para Dionísio

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.

Voz e vento apenas

Das coisas do lá fora


E sozinha supor

Que se estivesses dentro


Essa voz importante e esse vento

Das ramagens de fora



Eu jamais ouviria. Atento

Meu ouvido escutaria

O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza

E sorver reconquista a cada noite

Pensando: amanhã sim, virá.

E o tempo de amanhã será riqueza:

A cada noite, eu Ariana, preparando

Aroma e corpo. E o verso a cada noite

Se fazendo de tua sábia ausência.



Porque tu sabes que é de poesia

Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,

Que a teu lado te amando,

Antes de ser mulher sou inteira poeta.

E que o teu corpo existe porque o meu

Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,

É que move o grande corpo teu



Ainda que tu me vejas extrema e suplicante

Quando amanhece e me dizes adeus.




A minha Casa é guardiã do meu corpo

E protetora de todas minhas ardências.

E transmuta em palavra

Paixão e veemência



E minha boca se faz fonte de prata

Ainda que eu grite à Casa que só existo

Para sorver a água da tua boca.



A minha Casa, Dionísio, te lamenta

E manda que eu te pergunte assim de frente:

À uma mulher que canta ensolarada

E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?



Porque te amo

Deverias ao menos te deter

Um instante



Como as pessoas fazem

Quando vêem a petúnia

Ou a chuva de granizo.



Porque te amo

Deveria a teus olhos parecer

Uma outra Ariana


Não essa que te louva


A cada verso

Mas outra



Reverso de sua própria placidez

Escudo e crueldade a cada gesto.



Porque te amo, Dionísio,

é que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente



E por isso talvez

Te aborreças de mim.

Hilda Hilst

[postado por Ediane Oliveira]


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Descobrimento

Abancado a escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da Rua Lopes Chaves
De repente senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.


Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.


Esse homem é brasileiro que nem eu.

Mário de Andrade

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O último poema


Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Manuel Bandeira

Poema extraído do livro " Manuel Bandeira — 50 poemas escolhidos pelo autor", Ed. Cosac Naify – São Paulo, 2006, pág. 35.

[Postado por Daniel Moreira]

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O guardador de rebanhos - VIII


Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

Fernando Pessoa
(Alberto Caeiro)

[postado por Ju Blasina]

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa [Álvaro de Campos]

[postado por valder]

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Mar repleto

 
o mar repleto de incertezas
é certo que avisa
a-pressa-das marés
a calmaria das ondas
a dureza dos rochedos.

o céu recheado de vazios
enchendo de avisos
a-pressa-dos aviões
a correria das nuvens
a leveza dos ventos.

amor pleno de dúvidas
decerto que é vasilha
a-pressios-idade cheia da Lua
a inclemência outra do Sol
à singeleza das datas.

Richard Serraria  [músico, compositor, poeta, graduado em Letras pela UFRGS, Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, ativista cultural com atuação na cena porto alegrense há mais de 15 anos. Atua junto à banda Bataclã FC há 11 anos e possui dois discos solos gravados: Vila Brasil e Pampa Esquema Novo]

[postado por Ediane Oliveira]

quinta-feira, 23 de agosto de 2012


Estoy aqui entre trapos y manzanas
entre los hombres pré-históricos y sus hembras
con la hambre de mi cuerpo
la sonrisa murcha e calada
estoy como que muda, sensível
lejos de las esquinas
que me fazem transeunte noturno.


Juliana Nunes

É natural de Jaguarão/Rs, formou-se em História Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Pelotas; desenvolve há cinco anos uma pesquisa na área de história, antropologia e música junto ao Clube Negro 24 de Agosto. Leciona História na Escola Salis Goulart da cidade de Pelotas. Atualmente se dedica ao estudo da Flauta Doce junto ao programa de extensão da Ufpel, a poesia e contos publicados no blog recentemente criado pela autora.

[Postado por Gabriel Borges da Silva]

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

calcâneo


há dias que imagino
um prego enferrujado
enfiado no calcanhar

fosse projétil

entre a pele
a dor e o músculo
o osso, eu e este poema

seríamos outros

Volmar Camargo Junior
poeticaipsisverbis.blogspot.com.br

Gaúcho de Cruz Alta, V. já andou por muitos cantos do RS - atualmente, para em Rio Grande. Formado em Letras pela Unicruz, cursa Arquivologia na Furg. Já teve diversas ocupações, hoje, se ocupa dos livros - e de fotografias e batucadas, sempre que tem oportunidade. É autor de três e-books e de uma forma poética (os Blavinos - em parceria com Ju Blasina). Seus escritos estão espalhados por vários blogs coletivos e individuais, sendo VERBO o mais recente deles.

[postado por Ju Blasina]

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Minhas pernas anseiam por ti
Meu sangue quente te espera
Meu sentir transborda de um desejo borbulhante
Minha boca procura teus lábios de carne
Minha pele arde, queima
Em busca da tua
Meus olhos, meu olfato, meus ouvidos
Te procuram numa busca incessante
Uma umidade de fogo me acompanha
E te chama
De novo, mais uma vez
Para mergulhar em mim...

Lúcia Marques
[Postado por Valder Valeirão]

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

súplica

peço que me deixes
querer
deixar de te querer

que me queiras
mesmo sem querer
como a ti ainda quero
e como, despedidamente
te quero desistir

que me deixes ir embora
e nao me peças volta
como outrora
éramos calma, desejo
ilusão: estória

que me deixes me deixar
sozinha
como sempre me deixaste

e tanto me mataste
enquanto te entrelaçaste
em outros seres
igualmente
sós

debaixo do sol
suplico que me deixes
ao menos com a solidão
em meio a essa imensidão
das tuas ausências hipócritas

que me sangram
e me desfalecem sã

que me deixes então te deixar
como nunca quis
mesmo me deixando

para que eu queira a mim
um pouco de vida.

para que meu solitário
coração
me pertença
de novo
ao menos uma vez.

[Ediane Oliveira]
www.diidiss.blogspot.com

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Abril Despedaçado

As cortinas se abriram.
A kombi vende refri e
                      pipoca.
É dentro da cena
                      que desemboca
a insistente necessidade do
                      pensar.

O desgosto do agosto me
incentiva a pular...
O abraço da companheira me
faz desistir e ... negar.

Sopra o vento.
Muda o tempo.
E vivo o abril.
É sete!
O Sete de Abril.

As portas estão cerradas,
está proibida a encenação.

Restam quinze minutos:
voltemos ao nosso trabalho.

Gabriel Borges

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O amor

O amor nasce prematuro
Alimenta-se de beijos
Caminha na ponta dos dedos
Até dizer eu te amo
O amor equilibra-se na corda bamba
Chora feito criança
Sofre mais do que merece
O amor quase nunca esquece
As palavras rudes e ternas
O amor escorre por entre as pernas
Contagia a pele
Arrepia a alma
Provoca frio na barriga
E cataventos.

Daniel Moreira
poemas-urbanos.blogspot.com

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Partindo dos olhos


Tenho essa lágrima
seca que repousa
num canto
de um olho - o esquerdo
porque o direito
é um olho que só ri
ou faz de conta que sim

meu olho esquerdo
é mais caído
[embora ambos assim o sejam]
creio que tal assimetria se dê
em razão do peso 
que o pobre carrega sozinho

o olho direito não é
solidário
a dor de seu vizinho
faz que não
recai sobre si
os mesmos problemas
oculares

faz que não
vê, aquele olho besta
e finge bem, uma vez
que é ele
meu olho ruim
assim como todo o lado
do corpo do qual faz parte

talvez seu vizinho
que a tudo vê melhor
tenha mais razão 
para chorar 
e carregar restos
de dores em lágrimas
secas

certo é que ambos
hão de se fechar
juntos
algum dia
[e desconfio que nesse dia até
o direito há de chorar
se ainda houver tempo].

Por Ju Blasina
P+2T: jublasina.blogspot.com

segunda-feira, 13 de agosto de 2012


Nesse cavalgar insensato
que as horas transcende
o delírio guardado
de um beijo distante

Nessas pernas grossas
que o vento desenha
o instante selado
no movimento divino

Nessa boca vermelha
o intento de um louco
demente levado
a prazeres infindos

Nessa reza constante
tua carne presente
é que me torna demônio
num céu sem inferno.

Postado por [valder valeirão]

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Pensamento

Pensamento que vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.

Arnaldo Antunes dispensa apresentações. Além de ser um grande artista visual e músico, é um poeta que brinca e se lança com palavras-sentimentos de uma forma marcante e envolvente.

[postado por Ediane Oliveira]

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Albukassen

A este
segue o ato de roubar,
para dar-lhe duas tragadas,
o cigarro da irmã
e, ao mesmo tempo, tomar
do balcão um copo
de vidro grosso com pirâmides
talhadas em baixo
relevo
da base até uma altura
de quatro centímetros sendo
o restante cinco lisos centímetros
polidos, girá-lo
com os dedos em tenda
sobre a boca do cristal,
soerguê-lo com as duas mãos,
tornar a olhar,
levar o copo aos lábios,
baladeira pilhada pelo líquido
caramelado,
sorver de um gole
a metade do conteúdo,
deixá-lo na boca com o cimo
da língua pressionado
contra o palato,
endireitar a cabeça
em sua direção,
sorrir com os lábios
úmidos bem tesos,
erguer a mão livre, a esquerda,
mover com a palma a si
o dedo índice em gancho, estender o braço
em posição horizontal,
tocar
o que vinha olhando, uma boca, nuca,
com os lábios sempre tesos
abrir esta outra boca e destilar.


Cristian De Nápoli nasceu em Buenos Aires, em 1972. Publicou em 1999 sua primeira coletânea de poemas, chamada Limite Bailable, seguida de El Ringue (2004), lançado por sua editora Black & Vermelho, e Los Animales(2008), após ganhar o prêmio do Festival Internacional de Poesía de Medellín. Viveu algum tempo em Helsinki e traduziu o poeta finlandês Tomi Kontio (n. 1966).

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

POEMA


Na tua origem
Está um líquido viscoso
Esbranquiçado e sujo
Invadindo o ventre de alguém
Transtornada de luxúria
E de palavras mágicas
Dentro do corpo a sujidade infecciona
E a carne incha como um furúnculo
Por longos meses de febre e luta
E um dia um dia a sujidade invade o mundo
Nua coberta só de sangue e plasma
Aos gritos
Sem nada e sem saber nada
Sequer uma palavra
Uma lâmina afiada confere-te individualidade
Lavam-te o corpo põe-te um seio na boca
Dão-te um nome
Passas então a existir


Paulo José Miranda

É poeta, escritor e dramaturgo. Nasceu na Aldeia de Paio Pires, Setubal, em Portugal. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Lisboa. É membro do Pen Club desde 1998. Publicou três livros de poesia, quatro novelas, uma peça de teatro e "A América". O seu primeiro livro de poesia venceu o Prémio Teixeira de Pascoaes em 1997 e a sua segunda novela venceu o primeiro Prémio José Saramago em 1999. Recebeu uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura para escrever a sua terceira novela e uma outra da Fundação Oriente para viver três meses em Macau e escrever a sua quarta novela. Tem vários poemas, textos e artigos editados em revistas e jornais de vários países. O seu mais recente livro publicado é "A América", um texto àcerca dos EUA, em 99 pontos, editado em versão bilingue pela Quetzal/Bertrand; texto que começou por ser publicado online em 2004.

[Postado por Daniel Moreira]

terça-feira, 7 de agosto de 2012

A desventura do ócio


Fosse pra ser,
teria sido.
Não se chora
pelo leite
nem fervido.

Arrepender-se
do que não se fez
é tolice.
Dói como se talvez
existisse.

Não,
não há se,
nem se não,
tudo é vão.

Passado
é letra morta
que apodrece
sem caixão.

Mineira, advogada, servidora pública federal há 13 anos, Renata escreve desde bem menina. Sempre foi mais da poesia que da prosa. Em concursos literários, já obteve a publicação de vários de seus trabalhos. Integra Maria Clara: universos femininos, obra que reuniu 12 poetisas de todo o país. Maquiadora profissional, atua na área da caracterização cênica. Oferta seus quitutes no blog Doce de Lira.

[Postado por Ju Blasina]

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Rua do Amor Mudou de Sentido

Mudou de sentido a Rua do Amor
O namoro, o flerte
O mate curtido
O apenas olhar
O trottoir tão antigo
De todo domingo
Com o telhado caído
Tem inverso sentido
Na Rua do Amor
  
O contorno
Na frente da Igreja
Com o carro tão novo
Te benze meu povo
Não dá mais pra fazer


Mas, não há nada perdido 
Mesmo com toda a sina
De um telhado caído 
Pela lei não foi proibido
Em todo o sentido
Amar como for

Jorge Passos

Postado por [valder valeirão]

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Canção


O peso do mundo

é o amor.

Sob o fardo

da solidão,

sob o fardo

da insatisfação


o peso

o peso que carregamos

é o amor.


Quem poderia negá-lo?

Em sonhos

nos toca

o corpo,

em pensamentos

constrói

um milagre,

na imaginação

aflige-se

até tornar-se

humano –


sai para fora do coração

ardendo de pureza –

pois o fardo da vida

é o amor,

mas nós carregamos o peso

cansados

e assim temos que descansar

nos braços do amor

finalmente

temos que descansar nos braços

do amor


Nenhum descanso

sem amor,

nenhum sono

sem sonhos

de amor –

quer esteja eu louco ou frio,

obcecado por anjos

ou por máquinas,

o último desejo

é o amor

– não pode ser amargo

não pode ser negado

não pode ser comido

quando negado:


o peso é demasiado


– deve dar-se

sem nada de volta

assim como o pensamento

é dado

na solidão

em toda a excelência

do seu excesso.


Os corpos quentes

brilham juntos

na escuridão,

a mão se move

para o centro

da carne,

a pele treme

na felicidade

e a alma sobe

feliz até o olho –


sim, sim

é isso que

eu queria,

eu sempre quis,

eu sempre quis

voltar

ao corpo

em que nasci.

 Allen Ginsberg - Uivo - Pág. 63

[postado por Ediane Oliveira]

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Poema

Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
                                 se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
          bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
        morrem comigo.
Ou não:
       o sol voltará a marcar
       este mesmo ponto do assoalho
       onde esteve meu pé;
                                     deste quarto
       ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
           uma nova cidade
           surgirá de dentro desta
           como a árvore da árvore.
Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

Ferreira Gullar

quarta-feira, 1 de agosto de 2012


Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...


[Postado por Daniel Moreira